Ariovaldo Ramos é filósofo e teólogo e reconhecido líder evangélico progressista. Pastoreia a Comunidade Cristã Reformada em São Paulo. Trabalhou para várias organizações paraeclesiásticas como a missão Jovens da Verdade, Vinde, SEPAL e na Visão Mundial (como seu presidente). Foi presidente da Associação Evangélica Brasileira (Gestão 2000-2003) e conselheiro do CONSEA – Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Gestão 2004-2007). Nessa entrevista, dada em 2003 para Flávio Conrado, Ariovaldo Ramos fala sobre sua trajetória missionária nas diferentes “organizações paraeclesiásticas” nas quais participou, a relação destas com as “instituições denominacionais”, como prefere se referir às igrejas evangélicas, e a retomada dos evangelicais.
(Entrevista publicada em Novos Diálogos – http://www.novosdialogos.com/artigo.asp?id=249)
Comecemos pela sua formação…
Eu fiz Teologia na Metodista Livre e fiz Filosofia na USP, mas eu não me formei em Filosofia. Eu fiz dois anos e fui para o Rio de Janeiro. Depois voltei e fiz mais um ano, mas tive que ir para o Rio de Janeiro de novo e interrompi o curso.
A sua denominação era metodista?
Metodista Livre. Eu me converti na Metodista Livre, fiquei oito anos lá e depois, ainda na minha cidade, Guarulhos, saí para uma comunidade independente histórica, calvinista. Fiquei dois anos nessa comunidade e depois fui para a Igreja Presbiteriana do Brasil. Não como pastor, como membro mesmo. E aí o Caio [Fábio] me chamou em 1984. Fiquei com o Caio até 1987 da primeira vez mas antes disso eu já tinha ido em 1981 para o Jovens da Verdade. Primeiro eu fui para o Jovens da Verdade. Fiquei de 1981 até 1984 lá. O Jovens da Verdade é uma missão que trabalha com jovens, com acampamentos, e eu participava de tudo como obreiro da missão. Eu fui convidado pelo Jasiel Botelho; tinha feito já o seminário mas não era ordenado. Como o Jovens da Verdade era uma missão eminentemente evangelística na minha época, nosso trabalho era ir de igreja em igreja despertando para a evangelização.
Como os Vencedores por Cristo…
Mais ou menos…os Vencedores por Cristo eram mais sofisticados e nós éramos mais brasileiros, bem nacionais. Ir onde a igreja está, no interior, cruzar o país, evangelizar. Os Vencedores tinham mais uma visão de treinamento dos jovens. Nós tínhamos mais uma visão de despertamento. Nós surgimos em 1968. O Jovens da Verdade foi o primeiro dos nacionais. Os Vencedores por Cristo foi o Jaime Kemp que começou, também em 1968, um pouquinho depois da gente. Vem fazendo um bom trabalho e hoje colhem os frutos.
Porque essas missões surgiram nessa época?
Eu acho que foi uma reação ao que a Ditadura fez na igreja. A Ditadura fechou a porta da igreja para os jovens. Os jovens não tinham onde se reunir, as federações de jovens foram fechadas, os jovens não podiam promover nada, foram fazer na rua. Começaram a desenvolver ministérios paralelos.
Mas com uma proposta diferente da que tinha sido organizada anteriormente através das federações de jovens que eram mais engajadas sócio-politicamente…
É, eram jovens evangelistas mesmo, um avivamento nesse sentido. E aí eu participei disso, se bem que eu fui a segunda geração; eu cheguei em 1981. Eu tinha 25 anos. Eu nasci em 1956.
E a maioria dessas organizações de jovens nasceu em SP…
A maioria. Parece que teve uma que nasceu em Goiânia, Jovens Livres, se não me engano, mas a maioria foi em São Paulo, curiosamente. Era o Jovens da Verdade, o Vencedores Por Cristo, Jovens em Cristo, MILAD, Som Maior, Unidos em Cristo…todos em São Paulo. E todos, de certa maneira, subproduto de Palavra da Vida. Palavra da Vida começou um trabalho com jovens no Brasil — americano, conservador, mas desenvolveu e deu aos jovens essa noção de que os jovens podiam fazer, numa época em que a igreja estava fechando a porta para os jovens por causa da Ditadura. A situação da Ditadura no Brasil foi brava e os evangélicos foram muito influenciados. O nosso povo realmente teve um relacionamento muito complicado com a Ditadura. Muitos dos nossos foram expulsos, tiveram que fugir do país, outros foram presos. A igreja caiu na mão da direita. A direita fechou a porta e esses movimentos foram uma reação a isso. E até que não era muito consciente, não era ideológico, não eram jovens querendo se rebelar contra o regime. Era gente querendo pregar o evangelho.
Nos espaços das igrejas não se permitia fazer isso?
Não do jeito que eles estavam fazendo porque no espaço das igrejas a coisa ficou muito controlada. Os pastores tinham muito medo do que podia acontecer com os jovens. Então, essas coisas foram surgindo mas é muito curioso porque não foi ideológico. Não eram caras progressistas lutando contra a Ditadura, nem tinham consciência. Mas acabaram incomodando o sistema porque tinha essa coisa libertária, de sair, de pregar o evangelho, o jovem pode, o jovem faz, tem de dar espaço para o jovem. Ideias que por si só eram libertárias.
A ABU – Aliança Bíblica Universitária também fazia parte desse processo?
A ABU também teve uma importância muito grande nessa época. A ABU já era mais consciente. A ABU tinha mais reflexão. Mas os Jovens da Verdade, Jovens em Cristo, Vencedores por Cristo, era só o desejo de pregar. Muito interessante. É um fenômeno. E aí eu participei do Jovens da Verdade de 1981 a 1984 e em 1984 fui trabalhar com o Caio.
Fazendo o quê?
Eu fui pra ajudar na organização das cruzadas. O Caio promovia cruzadas evangelísticas e ele precisava organizar isso direito porque as igrejas convidavam mas faltava manual, faltava quem desse treinamento, quem estabelecesse como os conselheiros deviam ser treinados, e tal. Aí fui pra lá pra isso. Eu fiz muito mais coisas mas o princípio era esse aí. Acabei até trabalhando na administração geral da Vinde mas eu fui pra lá para cooperar com as cruzadas. Em 1987, voltei pra São Paulo e fui pra Igreja Batista do Morumbi. Trabalhei secularmente numa empresa de consultoria e fiquei nessa função de consultoria até 1992. Era uma consultoria organizacional: ia nas empresas e criava sistemas gerenciais. Eu trabalhava na área de treinamento por causa da minha formação em Humanas. Aprendi muita coisa. E era membro da Igreja Batista do Morumbi, já estava casado e fiquei lá até 1997. Em 1992, entrei na SEPAL e fiquei até 1995. Em 1995 e 1996 trabalhava com o Caio no Rio sem morar lá, e em 1997 voltei pra SEPAL.
Na SEPAL, o que você fazia?
Na primeira fase, eu era funcionário e trabalhava com o Ricardo Duncan. De 1992 a 1995. O Duncan era o diretor da SEPAL e eu era uma espécie de secretário. Eu estava lá à disposição: qualquer projeto eu fazia junto com ele. A SEPAL é um conglomerado de missionários que serve à comunidade local através dos seus líderes. Sempre foi isso, nunca foi diferente. O que mudou na SEPAL foram os seus líderes; mudam os missionários, mudam as ênfases ministeriais. Mas o cerne da SEPAL continua o mesmo: Servindo Pastores e Líderes.
Mas a SEPAL tem um viés bem conservador…
Pois é…varia muito. Na época que eu entrei era bem conservadora teologicamente, em 1992. Ideologicamente sempre foi conservadora e continua sendo com exceções que tinha a ver comigo e com o Oswaldo Prado basicamente. Somos progressistas. Mas a SEPAL sempre foi conservadora ideologicamente. Agora, teologicamente ela mudou. Quando eu entrei em 1992 ela era bem mais conservadora mas depois com o crescimento do ministério da Neuza Itioka, Lisa Groves, David Kornfield, os Kraft [Lourenço e Estefânia], que têm um perfil mais pentecostal, a SEPAL se abriu para um lado da igreja que até então ela não tinha tido muito contato que é essa vertente pentecostal, carismática. Então, ela deixou de ser teologicamente conservadora, ela se tornou híbrida. Porque você tinha conservadores do ponto de vista teológico convivendo com gente como a Neuza da turma da batalha espiritual. Agora, a Neuza saiu, não está mais na SEPAL e a SEPAL voltou a ter um perfil teológico mais conservador novamente. A SEPAL sempre foi mais ligada com as igrejas históricas. Com a Neuza, que estava numa igreja neopentecostal e com o Kornfield, na Assembléia de Deus, ela deu uma guinada. Agora, voltou a ser mais conservadora. O Kornfield foi para a igreja batista, a Neuza não está mais lá; então, ela ganha um contorno mais conservador.
Por que a SEPAL convidou você que não tinha esse perfil conservador?
Bom, quando eu fui em 1992 eu não fui pra ser missionário da SEPAL mas pra ser funcionário do Ricardo Duncan porque eles estavam com um problema na área de congressos; o congresso deles tinha caído e eu tinha sido, junto com a Judith [Ramos] e o João Bezerra, um dos organizadores do Congresso Vinde que começou a crescer e se tornou um fenômeno. Então, ele me chamou justamente pra ajudar na recuperação do congresso SEPAL. Era um primeiro projeto; depois acabei sendo contratado como um assistente dele para “n” projetos. Quando eu voltei pra São Paulo em 1997, eles me convidaram já na condição de missionário. O convite para ser missionário tem a ver com o trabalho que a gente fez quando era funcionário. Deus realmente abençoou e a gente conseguiu ser útil na reestruturação do congresso e também o pessoal foi percebendo outras contribuições da gente na área de reflexão e percebendo também o nível de relacionamento que eu tinha com colegas, com pastores. Acabaram me convidando pra assumir como missionário em 1997. Foi uma abertura do Ricardo Duncan, claro com a anuência do grupo.
Porque você estava na Vinde que não era conservadora….
A Vinde era bem progressista, sempre foi. O Caio era um dos defensores da Missão Integral. Em 1991 nasce a AEVB que no primeiro momento estava muito pendurada no Caio. Em 1996, eu ajudava o Caio na AEVB. Eu fui ser diretor nacional da AEVB em substituição ao Luis Wesley que foi para os EUA estudar. Mas em 1997 eu voltei pra São Paulo e foi quando eu recebi o convite da SEPAL.
E porque você saiu da Vinde?
Quando o Caio me chamou a segunda vez, ele me chamou pra fazer uma espécie de trabalho em cima dos livros dele. Um acompanhamento mais teológico dos livros e do programa de TV que foi o que eu fiz em 1995 e 1996. E esse trabalho praticamente estava feito depois de dois anos. De fato, não havia muita coisa mais para eu fazer naquela nova Vinde. Porque não era mais a Vinde evangelística. O Caio já não fazia mais cruzadas evangelísticas, só fazia aqueles grandes congressos. Tinha a TV, tinha a rádio, tinha a Fábrica de Esperança. E eu não estava diretamente envolvido em nada disso. O meu papel era fazer essa revisão teológica pra ver como estavam os livros, como estavam os programas e fazer as adequações teológicas. Em dois anos isso estava feito.
E o que era essa revisão teológica?
Reler os livros, rever os programas, acompanhar, treinar os caras que editavam os programas pra eles entenderem o mínimo de ênfases teológicas, de modo que eles soubessem reconhecer o que podia e o que não podia entrar. Basicamente isso. O que podia e não podia entrar? Coisas que não fossem de acordo com a teologia reformada. Por exemplo, se tivesse um cara que participou do programa e tivesse qualquer ênfase que vai contra a teologia reformada. Às vezes precisava editar as pregações do Caio que eram longas; eles tinham que saber o que podia cortar, o que não podia; o que se você cortar a mensagem fica sem sentido. Coisas dessa natureza. Isso estava feito em dois anos. Aí não tinha espaço pra mim naquela Vinde. Caio e eu conversamos e chegamos à conclusão de que era hora de voltar pra São Paulo. Já tinha terminado. Eu voltei e foi quando o pessoal da SEPAL soube que eu estava voltando e me convidou, agora já pra ser missionário.
E em que áreas lá na SEPAL você desenvolveu seu ministério?
Na SEPAL, você desenvolve o seu ministério. Você dá a sua ênfase. A SEPAL não diz pra você o que você tem que fazer. Cada um de nós tem a sua ênfase. A minha ênfase é Missão Integral e Eclesiologia. E todos nós fazemos basicamente a mesma coisa que é treinar pastores e líderes, que essa é a ênfase da SEPAL. Então o que eu fazia era isso: treinar pastores e líderes nessas duas áreas basicamente, Missão Integral — que envolve missiologia, missão transcultural, missão urbana, compreensão da responsabilidade sócio-política da igreja — e Eclesiologia, que é uma área que eu gosto e escrevi um livro Igreja: e eu com isso? sobre o que é a natureza da igreja e a vida prática da igreja.
Quando você voltou da Vinde, já voltou como pastor?
Quando eu estava no Rio, eu tinha um amigo — Antonio Carlos, da Igreja Presbiteriana da Barra — que começou uma congregação em São Paulo, que hoje é a Comunidade Cristã Reformada, que não tem vinculação nenhuma com a Igreja Presbiteriana, só na teologia. A teologia é igual: calvinista, sistema presbiterial, conselho. Mas não é ligado à denominação. Ele começou essa congregação e quando eu fui pra São Paulo, em 1997, ele pediu que eu assumisse. Mas antes de voltar pra São Paulo em 1997, nos primeiros três meses, o Antonio Carlos recebeu uma bolsa pra estudar inglês nos EUA e ele pediu pra eu ficar esses três meses na igreja dele e eu fiquei pastoreando a Igreja Presbiteriana da Barra três meses enquanto ele estava nos EUA. Foi uma experiência ótima. Quando voltei pra São Paulo, num primeiro momento, comecei a pastorear a igreja repartindo com o Antonio Carlos que ia quando podia, até chegar uma hora que ele não podia mais porque realmente é complicado ficar indo e vindo. Aí eu assumi a igreja e estou lá até hoje. E é uma igreja independente porque quando eu assumi ela não tinha condições de ser emancipada e depois, quando ela tinha condições, o pessoal não estava a fim de se envolver com a mesma denominação por vários motivos. Então, acabamos ficando como uma denominação independente que é a Comunidade Cristã Reformada, mas mantivemos nossas raízes calvinistas.
Escutando sua trajetória, ela está muito mais ligada a essas diferentes “organizações paraeclesiásticas” do que a um pertencimento denominacional. Como você vê isso?
Começa pelo fato que eu resisti à ordenação até 1992. Eu queria ser leigo. Não queria ser pastor. Porque eu sempre acreditei nessa coisa do sacerdócio universal dos crentes, de que a igreja tem que ser leiga. Então, era uma coisa de coerência. Mas lamentavelmente eu tive de que me dar conta que a igreja não consegue conviver direito com esse libertarismo todo. Mas se eu tivesse de me classificar, eu me classificaria como um cara paraeclesiástico.
Como essas organizações eram e são agora vistas pelas igrejas?
Hoje como parceiras. No passado como inimigas. Muita briga. Jovens da Verdade mesmo sofreu demais. Era acusada de tirar os jovens da igreja, de desviar os jovens, de ficar “colocando minhoca na cabeça” dos jovens, todo tipo de acusação. Então, era uma coisa assim terrível. Hoje, não, elas são parceiras. A igreja amadureceu, as entidades também amadureceram. Porque também tinha muito confronto desnecessário. Não precisava ter tanto confronto, mas tinha. Era aquela coisa da reação na proporção da ação. Não era alguma coisa que você pudesse chamar de sábio.
Mas em 1992 você foi ordenado pastor…
É, eu aceitei a ordenação porque o pessoal já me chamava de pastor. Me apresentava como pastor. Aí todo lugar que eu chegava eu dizia: “não, eu não sou pastor!”. Até que chegou uma hora que os caras já falavam que eu era pastor, me chamavam de pastor, e eu fui vencido. Vencido pela realidade. Fui pra ordenação e pronto. Eu não tive mais que ficar explicando toda hora que não era pastor.
E aceitar cuidar de uma comunidade também foi outra mudança…
Foi, foi uma mudança e tanto. Uma coisa que eu gosto de fazer, eu gosto de estar com os irmãos. Eu não gosto é da instituição. Eu e essa carga institucional não nos damos bem mesmo! Mas estar com as pessoas, eu gosto muito. Essa coisa de diretor disso, cargo para aquilo, eleição pra isso, eleição para aquilo. Acredito mais nessa igreja como uma reunião de amigos. Não que na minha igreja não tenha. Tem presbítero, pastor, etc…mas eu acho que você tem que ter a instituição o mais leve possível.
Mas nas organizações nas quais você trabalhou também não tinha uma carga burocrática muito grande?
Nas paraeclesiásticas, geralmente não. Claro que depende muito. Tem algumas que são hiperorganizadas. Mas geralmente não são. Porque o que diferencia as paraeclesiásticas das denominações é que as denominações pulverizaram. As paraeclesiásticas continuam na sua vocação. Porque elas nasceram pra executar uma visão, elas se mantêm na visão. Eles têm mais facilidade de se manter na visão do que as denominações. Porque as denominações realmente se pulverizaram. Então, você tem batista de todo jeito; tem presbiteriano de todo jeito; tem Assembléia de Deus de todo jeito. O que isso indica? Que os caras têm mais dificuldade pra manter a sua identidade. Eles são mais permeáveis pelo espírito da época, pelos modismos, pelas correntes teológicas. As paraeclesiásticas não; elas nascem com um objetivo. Elas perseguem seu objetivo. Mesmo na Vinde que era muito fortemente vinculada a uma pessoa, se permite ir mudando de acordo com o líder, porque ela tem flexibilidade. Se fosse numa instituição denominacional teria de sair, fundar outra. Mas como era uma paraeclesiástica, acompanha o movimento sem crise, sem angústia. Porque está ligada a uma pessoa e se sustenta nessa visão que a pessoa carrega consigo. Como a pessoa vai mudando a organização vai acompanhando, às vezes para o bem às vezes para o mal. Uma denominação não consegue isso. O líder vai mudando e vai saindo. Porque a instituição está lá, tem os seus estatutos, suas regras.
Qual tem sido o papel dessas entidades na igreja evangélica?
A igreja evangélica deve muito a essas organizações. Deve muito. Por exemplo, tudo o que a igreja hoje sabe do trabalho com jovens, aprendeu com as entidades paraeclesiásticas. Aprendeu com Palavra da Vida, com Jovens da Verdade, Mocidade para Cristo, Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo. Foram eles que trouxeram esse know-how todo. A obra missionária, por exemplo, até as igrejas realmente criarem as suas juntas e começarem a enviar seus missionários quem fazia isso eram as paraeclesiásticas. Eram as missões, as agências missionárias que faziam a coisa acontecer. Na verdade, as agências missionárias, as paraeclesiásticas, estão sempre um passo a frente da instituição. Eu faço questão de falar instituição denominacional porque não é da igreja. A igreja somos todos nós. O cara que está na Palavra da Vida também é igreja. O cara que está na ABU também é igreja. ABU, por exemplo, quantos jovens a igreja só não perdeu na universidade porque tinha uma ABU lá pra sustentar a fé dos jovens e ainda fazer deles evangelistas.
Não sei se um dia a instituição vai se dar conta disso, mas as instituições denominacionais devem muito às paraeclesiásticas. Inclusive visões assim mais avançadas da teologia, do engajamento cristão, nasceu de uma Visão Mundial que vê a necessidade social, de uma Cruzada Estudantil que vê a necessidade de evangelizar de forma mais pragmática, de uma Missão para o Interior da África, de uma Missão para o Interior da Índia, que vai na frente, que reflete. Começa a escrever, começa a dizer, começa a chamar a atenção da igreja institucional. Eu não sei se um dia as instituições denominacionais vão reconhecer isso mas o débito que elas têm com as paraeclesiásticas é grande. Paraeclesiástica é formada por um bando de gente que tem uma visão e se sacrifica por ela, com dinheiro ou sem dinheiro, com patrocínio ou sem patrocínio. É uma Portas Abertas na vida, indo atrás da igreja sofredora quando ninguém nem está aí. Eles viram instrumento de Deus pra despertar. Um cara que vai pra Ásia, fica desesperado e cria uma Visão Mundial e começa a ensinar a igreja a fazer ação social. Um William Booth que vai pra sarjeta de Londres e começa a entrar em pânico e cria um Exército de Salvação. A igreja denominacional deve muito a esses caras. Muito. Assim como deve para os caras que criaram organizações comunitárias, comunidades como Willow Creek, Igreja com Propósitos, que você pode discordar como eu discordo de quase tudo nesse tipo de visão, mas eu sou obrigado a reconhecer que Deus usou caras como esses pra chamar a atenção da igreja para certas coisas que as denominações, as instituições eclesiásticas não estão vendo. No mínimo eles levantaram uma discussão. Se eles não são a resposta, e muitas vezes não são mesmo, eles levantaram uma discussão. Isso é muito importante.
Você falou que uma das ênfases do seu ministério missionário é a Missão Integral. A Missão Integral nasce nessas entidades…
A Missão Integral nasceu lá em Lausanne pela contribuição de caras como Samuel Escobar e René Padilla que eram da ABU. São caras do movimento estudantil. Gente que está pensando, gente que está na universidade, que está evangelizando na universidade, e sendo questionado pelos caras da universidade se Deus não tem nada pra falar sobre o sofrimento na América Latina: “De que lado que Deus está? É assim mesmo? A gente vai ser explorado, Deus não tem nada pra dizer?” São perguntas que o Stott, por mais genial que seja, não está ouvindo. Ele está confortável lá na Inglaterra. Não quer dizer que os caras estejam sempre certos, eles podem ser profundamente questionados e acho que devem. Há modelos e modelos. Nenhum modelo é sagrado. Mas os caras no mínimo levantaram uma discussão, no mínimo chamaram os demais membros da igreja a pensar. Escuta o que vocês não estão vendo, o que nós não estamos vendo.
Então, aquele bando de jovens como os Jovens da Verdade na rua pregando o evangelho era um desafio para a igreja institucional. Se as instituições não se mexem nós vamos fazer o que tem que fazer. Ou a Jocum, por exemplo, desafiando jovens do mundo todo para ir ao campo missionário. Quem devia estar fazendo isso? As denominações. Mas onde está a visão missionária das denominações? Não tem porque elas, na verdade, tem uma visão de manutenção da instituição. Aí o que vai acontecendo? A igreja institucional, a denominação vai abrindo os olhos e começa a criar seus programas evangelísticos, seus programas missionários. O que há de criatividade, o que há de novo, o que há de arriscado, o que há de ousadia, geralmente vêm das paraeclesiásticas. É verdade que agora com esse fenômeno neopentecostal têm comunidades que estão sendo ousadas mas essas comunidades têm um quê de paraeclesiástica. Inclusive, às vezes, eles nem optam por nomes tradicionais: Bola de Neve, Projeto Vida, Projeto Raízes. É uma comunidade, se organiza como as instituições denominacionais se organizam localmente mas tem um quê de que estão rompendo, inventando uma coisa nova, querendo ser um novo jeito de ser igreja. Então, de certa maneira, elas também são um subproduto desse movimento chamado paraeclesiásticas. Eu acho que é um dos jeitos de Deus de fazer sua obra desenvolvendo essa coragem em alguns que rompem e tomam outro rumo e acabam fazendo escola. Quando Palavra da Vida e depois Jovens da Verdade começaram fazer acampamento era novo; agora um montão de igrejas tem acampamento, tem ministério de acampamento. Tem igreja que a primeira coisa que pode fazer tão logo tenha condições é comprar seu acampamento.
Quais foram suas referências principais nessa trajetória?
Quando eu comecei, Silas Antunes e Valdir Ruiz que foram os pastores que me ensinaram os primeiros passos. Howard Snyder teve uma grande influência embora nossa convivência tenha sido só de um ano mas me marcou de forma muito forte porque ele me ensinou a pensar teologicamente. E tem vários irmãos. Por exemplo, tinha um irmão chamado André Napolitano, um leigo na Igreja Metodista Livre que foi um cara que me ajudou muito a crescer como cristão. E gente como Jasiel Botelho, Guilherme Kerr, Dieter Brepohl da ABU, um pastor metodista livre chamado Expedito Calixto que marcou profundamente minha história na compreensão do pastorado. E eu fui lendo gente como Francis Schaeffer, que todo mundo lia, mas fui lendo principalmente os caras da ABU. A ABU foi trazendo os caras da Missão Integral e eu fui lendo e absorvendo. Agora, têm muitos caras que me influenciaram o pensamento. O Watchman Nee, por exemplo. Li muito o Watchman Nee e me fez muito bem. Li muito Francis Schaeffer, li muito René Padilla, Samuel Escolbar, Pedro Arana, os latinos. O Caio teve uma influência sobre mim excepcional, aprendi muito com ele. Aprendi muito com o Dieter Brepohl da ABU. Então, eu graças a Deus fui caminhando cada vez mais perto dos progressistas e isso pra mim foi essencial, fez muita diferença.
Você chegou a ter um envolvimento com a Ação da Cidadania em São Paulo…
Tive. Quando esteve o Betinho lá, eu já estava na SEPAL. E eu fui com o Oswaldo Prado — aliás, o Oswaldo Prado foi um cara que também fez diferença na minha vida — para uma reunião da AEVB [Associação Evangélica Brasileira] com movimentos como OAB [Ordem dos Advogados do Brasil], ABI [Associação Brasileira de Imprensa], e várias organizações não-governamentais que se reuniram para trazer o movimento do Betinho pra São Paulo e a gente criou a coordenação da Ação da Cidadania em São Paulo. A AEVB fazia parte e a AEVB me indicou para representá-la na coordenação. E foi jóia. Eu fiquei lá um ano ou dois fazendo esse trabalho com todo mundo. As igrejas participaram sensivelmente. Muitas igrejas participaram. A gente tinha grande potencial de arrecadação de alimentos, mais do que todo mundo e nós participamos muito. A presença evangélica se fez sentir de forma muito forte. Também tinha uns irmãos que não queriam participar de jeito nenhum, mas a maioria participou e participou ativamente. Jovens, principalmente, se envolveram muito arrecadando, levando víveres para as instituições. Foi uma das experiências mais ricas que eu já tive. Eu acho que foi um momento rico da história do Brasil. E eu estive também no CONSEA [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], que é mais ou menos uma repetição daquele momento, sem o mesmo glamour, sem a mesma pureza de intenções que o Betinho tinha. Por isso, também, sem a mesma mobilização. Mas é um movimento importante. Quem foi indicado para o CONSEA foi a AEVB. Havia um espaço para os evangélicos e o governo, por motivos que eu não conheço, decidiu que esse espaço seria da AEVB. A direção da AEVB fez uma enquete, porque tinha que decidir em cima da hora e o meu nome apareceu. O Carlos Bregantim deflagrou uma consulta nacional e meu nome saiu.
Qual a leitura que você faz do movimento evangelical hoje? Eu lembro que circulou tempo atrás a Carta de Curitiba…
Isso foi no meio da crise em 1998, 1999. O Osmar Ludovico convocou a gente pra conversar. Aí fomos lá os 9 [Ariovaldo Ramos, Valdir Steuernagel, Osmar Ludovico, Ed René Kivitz, Ricardo Gondim, Ricardo Barbosa, Paul Freston, Key Iuasa e Carlos Queiroz ], passamos uma semana juntos lendo a bíblia e orando, em Curitiba. E nasce aquela carta que foi um despertar, eu acho. Foi como se os evangelicais dissessem: “Escuta, nós estamos aqui. Nós não morremos não. Continuamos aqui e continuamos dizendo a mesma coisa”. E eu acho que isso acabou se tornando em alguma coisa a favor do movimento porque a coerência do grupo acabou se impondo.
A década de 1990 foi uma década perdida para o movimento evangelical. Nós fomos atropelados pelos neopentecostais, nos dispersamos. A AEVB foi uma conquista importante mas em 1994 ela entra em crise. Meados de 2000, a coisa desintegrou. Só uns poucos, entre os quais eu me alisto, se manteve firme mas nós fomos atropelados. Os neopentecostais cresceram assustadoramente, compraram a mídia, rádio e TV, montaram revistas. O Caio em 1995 ainda está lá, se sustentando, 1996 também, mas em 1997 já foi. Então, foi uma década complicada. E o próprio Caio, em 1995 e 1996, já estava na crise com a Universal, com outros evangélicos que ficaram do lado da Universal, a AEVB perdeu a sua pujança, os evangelicais deixaram o Caio na mão porque romperam com ele no congresso de Brasília. Porque o Caio, no congresso de Brasília, em 1994, queria que a divisa para o cara entrar na AEVB fosse a ética. Se o cara é ético, então ele é bem-vindo, independente da teologia dele. E os evangelicais não. Queriam que a divisa fosse a ética e a teologia. Tanto é que em 1994 ele leva a Valnice Milhomens para falar, leva o Ezequiel Teixeira, o próprio Estevam Hernandes. Mas os evangelicais, o pessoal da Missão Integral racha com ele. A palestra do Paul Freston foi divisor de águas. Ali o movimento racha e se dispersa porque não tem mais catalisador, mais ponto de aglutinação. Aí foi uma década perdida.
A retomada tem a ver com o desgaste dos neopentecostais. Eles mesmo se auto-denunciaram: uma sucessão de escândalos, práticas anti-éticas visíveis e claras, mesmo caras que a rigor não podem ser tachados de neopentecostais mas que andam com esse grupo se envolveram em questões éticas. Então houve um enfraquecimento da parte deles. Todas essas coisas abalam o nível de confiabilidade geral. Não do povo deles diretamente porque o povo vai sempre emprestar credibilidade ao líder. A isso se somam várias outras coisas. Esse grupos enfraqueceram principalmente como modelo para os colegas. Aí o grupo dos evangelicais vai ganhando força. A minha ida para o CONSEA foi um reforço. O fato de Valdir Steuernagel, Robinson Cavalcanti, eu, Ed René, Ricardo Barbosa estarmos escrevendo muito e em vários lugares também reforça isso. Então, eu vejo que a Missão Integral como nós a conhecemos está retomando força.