Então um palestrante disse, referindo-se a um jantar no melhor restaurante de Nova Iorque, que desfrutara em companhia de sua esposa: “É um mimo de Deus”. E foi assim que aquele mui próspero cristão resolveu sua crise de valores. Até compreendi o pobre irmão, e em minha própria crise de valores, tive consolado o coração. Nossos mundos são muito distintos, e assim como seus “mimos” são infinitamente mais caros que os meus, sua capacidade de mimar outros também. Vi que do meu pouco eu não costumo fazer muito, o que faz com que a distância existente entre nós seja apenas algumas muitas casas decimais.
Fico pensando no quanto é fácil ser um cristão à esquerda, em busca de uma vida simples e contente, enquanto sou apenas um universitário pobretão. A juventude nos traz sonhos contraculturais, dos quais, havendo um descuido, se tornarão apenas memórias de um diário esquecido na fase adulta. “Na vida real, o que manda é o dinheiro”, disse um jovem conhecido, que já perdera a alma na busca por ganhar o mundo.
[…] A tradição protestante distanciou-se da monástica, levando-nos ao mundo para desfrutá-lo também. Libertos dos traumas ascéticos do monasticismo, podemos nos alegrar com danças e boas prosas. Mas também precisamos reconhecer a grandiosa contribuição dos monges. Devemos desconfiar das conversas que acontecem na cidade. Se outrora olhávamos com tristeza para o corpo, hoje entramos com alegria em sua festa. Não se desconfia mais dos próprios desejos. O “nem tudo me convém” fora substituído pelo “tudo posso”.
Porém, as marcas de uma vida de negação dos prazeres, deixadas no cristianismo, pela Graça divina, atormentam-nos sempre os pensamentos. Por isso o conflito dos missionários que ouviram o citado palestrante. “Num mundo como o nosso, eu tudo posso? Qual seria o limite da conta bancária de um cristão?”. Lembremo-nos do modo como Cristo descreve um homem que vivia para ajuntar mais e mais (“louco”). Loucura também é impor como regra geral a pobreza e a partilha de tudo o que tem (as manifestações legalistas do cristianismo são sempre deturpações do Evangelho – e aqui temos dois extremos legalistas, um que manda-nos não ter nada e outro que nos manda ter tudo). No Reino (que não é, nem tem a pretensão de ser, um Estado totalitário, a que ele se opõe), ninguém é forçado a nada, somos apenas, graciosamente, convidados a participar, contribuir e partilhar, como forma de amor a Deus (que não vemos), manifestando-se aos necessitados (a quem vemos).
Por isso é que nos ofendem os forçosos apelos televisivos dos pastores-lobos de fiéis-abutres. Na fé cristã, tudo se faz em obediência a Cristo. Quem faz qualquer coisa por aparência ou outro desejo que não provenha do amor a Cristo e a sua Palavra, já se desviou do seguimento de Seu Mestre. “Por que me chamam: Senhor, Senhor. E não fazei o que vos mando?”. Nesse ponto, fico com o teólogo suíço Karl Barth, ao nos recomendar o afrouxamento de tudo aquilo em que antes colocávamos nossa esperança, a fim de que agora ouçamos a voz do Mestre e o sigamos.
Acabei de passar no mestrado e anseio tornar-me um professor universitário. Meu salário não será mais como o da maioria dos trabalhadores. Àquele tempo, meu coração permanecerá unido ao dos pobres? Será que me tornarei mais um daqueles cristãos caridosos de fim de semana, que deixam cair de suas mesas migalhas de caridade, manifestando assim sua piedade marketeira? Será que os “mimos de Deus” me cooptarão, fazendo minha fé murcha e sem vida?
Não nos esqueçamos jamais disso (assim oro): O símbolo de nossa fé é uma cruz, não um camaro amarelo. Sejam quais forem nossos planos, que se realizem “entre a manjedoura e a cruz”, conforme nos disse Valdir Steuernagel, em uma conversa tida num dos espaços de formação da ABUB, e assim concluiu respondendo a um missionário: “Não deixe de ler os Evangelhos, meu camarada”. Referindo-se à longa caminhada numa mesma direção, Valdir nos exortou a seguirmos o caminho da cruz. É um bom conselho de alguém que vem combatendo o bom combate há anos. Como ele, outros também, que, aguardando o tesouro que está nos céus, carregam na terra a marca da cruz, não sendo iludidos pelo brilho dourado de camaros quaisquer. Vigiemos para que não sejamos pobres e verborréticos ideológos.
Gustavo Marchetti Corrêa, ABU Vitoria-ES.
(Nota: O texto expressa uma opinião do autor e não reflete o pensamento da ABUB.)