Por Karen Aquino, assessora na região Minas Gerais
O que fazer num contexto de isolamento social? Que opções temos para que este tempo de quarentena seja produtivo ou menos tedioso? Nas últimas semanas creio que aqueles que podem e estão em casa têm feito e respondido esta pergunta. Além das muitas ansiedades causadas pela situação atual, repleta de incertezas sobre nosso futuro, estamos ansiosos também com o nosso presente.
Pensemos um pouco sobre nossa rotina diária. Em geral, somos pessoas bastante ocupadas: temos reuniões para participar, livros para ler, disciplinas para estudar, atividades para ser desenvolvidas e objetivos para ser cumpridos. Nossas agendas estão sempre cheias, nossos dias e semanas repletos de compromissos, e nossos anos por vezes preenchidos por planos e projetos. Raramente vivemos um período em que nos permitimos parar. Ser atarefado, produtivo e ter sempre o que dizer são características valorizadas em nosso tempo. Nos sentimos incomodados ou até mesmo culpados quando não alcançamos este padrão.
A situação atual de pandemia nos afetou de formas diferentes. Alguns estão à procura de preencher o tempo que ficou ocioso para evitar o tédio ou até mesmo para manter um nível de produtividade. Outros se viram forçados a reorganizar suas atividades e dar conta de um novo modelo no qual as condições são muito diferentes e geram um acúmulo de atividades e cansaço ainda maior.
No entanto, mesmo com as diferenças, compartilhamos o sentimento de não estarmos vivendo “normalmente” nossa rotina, aquela com a qual estamos acostumados. Estamos isolados fisicamente e vivenciando alguma interrupção de nossas atividades e planos em curso. Nos angustiamos com o presente e buscamos de alguma forma lidar com os sentimentos que surgem dele. Mas e se as interrupções e o isolamento forem encarados como oportunidades para o aprofundamento de nossa vida espiritual?
Henri Nouwen foi um teólogo e psicólogo holandês e é um autor que tem me ajudado a refletir sobre a possibilidade de olhar para a situação que temos vivido através de uma perspectiva diferente, acreditando que é possível darmos uma resposta criativa às interrupções involuntárias quando nos deixamos ser moldados por elas, e ao isolamento quando permitimos que ele se transforme em uma solidão frutífera, em uma solitude. Em um de seus livros sobre a vida espiritual ele nos oferece uma reflexão sensata e pertinente para o momento atual:
“E se os eventos de nossa história nos estiverem moldando, como o escultor molda a sua argila? e se apenas pela obediência a essas mãos que moldam possamos descobrir nossa vocação e tornarmo-nos pessoas maduras? E se todas as interrupções inesperadas na verdade forem convites para abandonar estilos de vida antiquados e fora de moda e abrir novas áreas de experiência? Finalmente, e se nossa história não for uma sequência cega e impessoal de fatos sobre os quais não temos controle e revele-nos uma mão-guia, que aponta para um encontro pessoal no qual todas nossas esperanças e aspirações serão satisfeitas?
Então nossa vida seria sem dúvida diferente, pois o destino seria oportunidade, as feridas seriam um aviso e a paralisia seria um convite a buscar fontes mais profundas de vitalidade. Então podemos procurar esperança em uma cidade que chora, em hospitais incendiados e em pais e filhos desesperados. Então podemos afastar a tentação do desespero e falar sobre a árvore fértil enquanto testemunhamos a morte da semente. Então sem dúvida, podemos escapar da prisão de uma série anônima de eventos e ouvir ao Deus da história, que nos fala no centro de nossa solidão e responde a seu sempre e novo chamado à conversão”.
Em tempos de crise, para termos nossa perspectiva transformada somos chamados a ouvir ao Deus da história. E ele nos fala por meio da solitude, do silêncio e da oração. Não seria este um bom momento para amadurecer nossas práticas espirituais e repensar nossa rotina acelerada?
Num momento da história marcado pelo medo e pela sensação de impotência deveríamos considerar o conselho que marca a espiritualidade dos padres e madres do deserto: “Retira-te do mundo, fica em silêncio e ora sempre”.
A solitude, o silêncio e a oração são disciplinas espirituais que não dependem do isolamento físico, não são um privilégio dos monges e eremitas. Elas podem existir e ser mantidas em qualquer lugar em que estivermos e até mesmo no contexto de uma vida corrida e produtiva. No entanto, ocasionalmente o isolamento físico e social e as interrupções daquilo que temos sob nosso controle, são meios necessários para que estas práticas sejam amadurecidas e valorizadas como aspectos essenciais de nossa espiritualidade. A partir desta perspectiva podemos encarar o momento em que vivemos como um convite a nos aprofundarmos nelas.
A solitude é uma solidão que se desenvolve no coração, capaz de nos fazer compreender o mundo a partir de um aprofundamento de nosso próprio ser. O silêncio é um meio de tornar a solitude uma realidade, pois nos tira das distrações que criamos para nos preencher, dos muitos ruídos que nos impedem de ouvir aquele que nos guia, e abre espaço para que cultivemos palavras frutíferas que geram vida. Por fim, a solidão e o silêncio nunca podem ser separados do compromisso com a oração incessante, aquela que afeta toda nossa humanidade, desmascara nossas muitas ilusões sobre nós mesmos e sobre Deus, e que pode remodelar nossa perspectiva para então vivermos o presente confiantes na presença ativa de Deus no mundo e na história.
Que o Senhor nos ajude a nos retiramos em solitude, a exercitarmos o silêncio e a orarmos sempre. E que com isso possamos criar um espaço interior onde nossos dias possam ser preenchidos por ele; onde o Espírito possa nos conduzir a novos lugares em nossa vida espiritual e a novas formas de serviço e obediência; onde ele possa agir transformando nosso ressentimento em gratidão, nossa tristeza em confiança e nossa dor em fonte de vida para outros.
Referências:
Crescer: os três movimentos da vida espiritual (Henri Nouwen)
O caminho do coração: A espiritualidade dos Padres e Madres do deserto (Henri Nouwen)