Por Marília Cavalcante, historiadora, representante do Muda-te no Brasil, que fez parte da ABU João Pessoa (PB) e participou das diretorias nacional e regional
“Amigo é coisa para se guardar do lado esquerdo do peito” é o que canta Milton Nascimento. A amizade é o cerne das relações. Jesus, nas últimas conversas com Pedro, pergunta-lhe se ele o ama. Logo em seguida, se apascentará suas ovelhas. Porque é na amizade que a gente compra a causa do outro. E como canta Emicida, “melhor amigo na praça que dinheiro no bolso”.
Ainda mais, a própria Trindade apresenta-se como uma constante comunhão, para a qual nós somos convidados a ser parte. E se a amizade é parte do ser de nosso Deus, em sua essência mais profunda, como não poderia a missão neste mundo ser reflexo dessa profunda comunhão? Jesus dizia que é pelo fato de vocês amarem uns aos outros e às outras que as pessoas saberão que são filhos e filhas de Deus. Desse jeito, dificilmente alguém que esteja sozinho no mundo vai se negar a participar de um espaço de comunhão e solidariedade.
Assim, como na Aliança Bíblica Universitária do Brasil (ABUB), a missão é feita na naturalidade que são formadas as relações. Repleta de atropelos e encontros, de discussões e afetos, de “cordas que foram partidas podem de novo soar”. A missão nasce da naturalidade da vida, dos encontros do cotidiano, das desconstruções que nos formam, das demolições e reconstruções.
Esse é o mais importante ensinamento que aprendi na ABUB: trabalhamos com amigos. E isso é lindo, maravilhoso! Porém, mais do que isso, estamos servindo nossos amigos também. Durante nosso tempo de trabalho na universidade, na escola e no ambiente profissional, o que queremos e devemos buscar é servir os nossos amigos e amigas. Acolhê-los, ouvi-los atentamente e compartilhar de nossas experiências, quando requisitadas.
Desde o final de 2019, eu comecei a trabalhar num movimento missionário muito legal chamado Muda-te. É um movimento de gente que procura morar em áreas marginalizadas e pobres das suas cidades. E a ideia é fazer amizade com nossos vizinhos, acolhê-los, sermos acolhidos, ouvir e sermos ouvidos. O propósito é criar relações com as pessoas à nossa volta. Tem missão mais especial que essa? Tem palavra mais bonita que a de Jesus, quando nos chama a servir, porém nos diz: “Não vos chamo mais servos, e sim amigos”.
É nesse encontro entre minha experiência de missão com a ABUB, meu encontro com o Muda-te e a vivência com as pessoas na comunidade onde vivo que aprendo mais ainda que amizade é palavra de ouro, importante maneira de existir no mundo. Como todos sabemos as zonas marginalizadas são, em sua maioria, compostas por pessoas negras. E se há algo que compõe a história desse povo são as mais diversas formas de resistência, entre elas as redes de solidariedade. E se é verdade que o amigo se põe de escudo quando a bala come solta, na experiência é isso que percebemos: o quanto as pessoas se cuidam e compram as brigas umas das outras.
Costumo dizer que a ABUB foi a matéria orgânica que permitiu meu crescimento saudável. Foram os cuidados sobre a minha vida e os ensinamentos dos mais diversos sobre amizade que permeiam meu trabalho cotidiano. Aprendi e aprendo que esse é um reino de amigos, que é preciso andar e conviver com as pessoas, servi-las e também nos deixarmos ser servidos. Acolher em amor e nos deixarmos ser acolhidos.
É bonito pensar num paradigma de missão em que não somos os únicos agentes, mas que estamos tal qual o outro, sempre aprendendo. E o aprendizado, assim como a missão, acontece muito melhor quando estamos no mesmo patamar, sem hierarquias de quem deve ser alcançado e de quem alcança. Para mim, isso pode acontecer na amizade. Ela nos permite manter uma relação de iguais. Como o que Jesus falou aos discípulos: “não servos, amigos”. Ou seja, não subordinados, serviçais, pessoas a quem envio ordens. E sim, amigos, com os quais Jesus compartilhou seus desejos e expectativas para esse mundo.