Memória e esperança

“Então, disse eu: já pereceu a minha glória, como também a minha esperança no SENHOR. Lembra-te da minha aflição e do meu pranto, 

do absinto e do veneno. Minha alma, continuamente os recorda 

e se abate dentro de mim. Quero trazer à memória o que me pode dar esperança.

As misericórdias do SENHOR são a causa de não sermos consumidos, porque suas misericórdias não têm fim; renovam-se a cada manhã. Grande é a tua fidelidade.”

 

Lamentações 3:18-23 (ARA)

Acabamos de ler seis versículos contidos no livro de Lamentações. No centro destes versos, podemos encontrar um versículo que é muito conhecido: “quero trazer à memória o que me pode dar esperança” (Lm 3:21). Os versos imediatamente anteriores (18 a 20) nos dão um tom do que é mais recorrente neste livro: o de profundo lamento, dor e sofrimento. Expõe com uma riqueza absurda os detalhes de uma alma abatida, de um ser humano que parece se encontrar no fundo do poço.  E os versículos seguintes (22 e 23) nos ajudam a ter uma perspectiva importante e relevante de futuro. De alguma forma, esse pequeno trecho consegue conectar passado e futuro, e conjugam a memória com a esperança. Esperança esta, que é para ser experimentada nesse nosso tempo de hoje, mesmo com todas as vulnerabilidades, desafios e também com as oportunidades que podemos ter.

Pois bem, esses primeiros versos do nosso trecho (19 e 20) citam a aflição do autor, seu pranto e o amargor de toda uma vida. O absinto era uma erva amarga que representa esse sabor ruim, e o que traduzimos como veneno, os comentaristas compreendem como sinônimo de fel, que é conhecido também pelo seu absoluto amargor. Relatam, portanto, todo o gosto ruim de uma vida que se entende destruída, um dissabor de viver. Relatam também um dissabor do qual parece não ter escapatória. No verso 20, sua mente fica presa aos ocorridos, aos fatos que geram dor. Sua alma se abate, ele diz, mas as lembranças dos ocorridos e as memórias da dor são invencíveis nesse momento. Parece que por mais que ele tente se livrar disso, as recordações cruéis e dolorosas o atacam novamente e isso acontece continuamente, recorrentemente, o tempo todo. 

Num momento de grande dor, o autor escolheu poesia. A verdade é que há tempos se exalta a racionalidade e a lógica como algo superior e completamente desconectado dos nossos sentimentos. Isso faz com que, em muitos momentos, a gente tente fugir do contato com nossos afetos e nossas emoções. Na ambiência do sofrimento, porém, somos obrigados a lidar com esses afetos e com essas emoções que talvez estivéssemos negligenciando a tanto tempo. A dor e a vulnerabilidade nos escancaram uma série de sentimentos que nem sequer sabíamos que era possível sentir. Diante da agonia, nosso coração pode se encher de autocrítica, de culpa, de preocupações, inseguranças, ressentimentos. Tudo isso sem contar a possibilidade de, na dor, encontrarmos gatilhos que disparam uma condição patológica que exige cuidados ainda mais profundos: a depressão. Além disso, aquilo que nos afeta as emoções, nos afeta como um todo. O corpo se abate também. Perde apetite, pede cabelo, dorme mais, dorme menos, aparecem dores musculares… a tensão emotiva tenciona também nossos músculos… Às vezes uma dor nas costas é muito mais uma questão psicológica do que meramente física.

Esse é o contexto do nosso autor. Esse é o contexto de quem diz querer trazer à memória o que pode dar esperança. Nossas memórias definem hoje, como a nossa vida foi, não é mesmo? Nossa vida acaba sendo, no fim das contas, o conjunto das memórias que temos e fazemos nela. É preciso portanto ter um certo cuidado com nossas memórias e ficar atento a como elas podem nos afetar ainda hoje.

A questão da memória é um tópico importante para os estudos científicos, nas áreas da saúde, tem tudo a ver com o campo da psicologia, da psiquiatria. Mas também para o campo das ciências humanas como sociologia, antropologia, e é claro, a história. A gente poderia passar anos conversando sobre isso. Mas em termos gerais, podemos dizer que existem memórias de curto prazo e memórias de longo prazo. As memórias se formam quando nossos neurônios se rearranjam no nosso cérebro, estimulados por disparos químicos que ocorrem quando vemos/ouvimos/cheiramos/degustamos/sentimos… Quanto mais extensas e bem enraizadas as conexões, mais de longo prazo as memórias tendem a ser, porque aí o acesso a essas memórias fica mais “pavimentado” e direto. 

Memórias de longo prazo, porém, podem ser enganosas. Situações vivenciadas num passado muito distante, já não são mais registradas com detalhes na nossa mente. Isso faz com que preenchamos lacunas da nossa memória com coisas que não foram necessariamente reais, e que podem ser mais fruto de como nos sentimos em relação ao ocorrido do que como aquilo realmente foi. Além disso, em traumas mais fortes, muitas informações de memória podem mesmo ser ‘apagadas’ ou ‘bloqueadas’ por mecanismos de defesa. Memórias não são fatos.

É como se do fundo do poço, lá de baixo, de onde não parece haver escapatória, arrebatado numa dimensão de dor num continuum de pensamentos e recordações dolorosas o autor nos dissesse: “Preciso de outras recordações. Preciso acessar memórias diferentes dessas que eu tenho acessado agora.” Trata-se da necessidade de um novo marco memorial, distinto deste que aprisiona. Novo marco memorial que pode dar esperança. No meio da impossibilidade de visualizar um futuro, qualquer que seja, o autor deseja buscar em seu passado coisas que o projetam para adiante.

O autor não está propondo fuga de memórias ruins, nem um negativismo histórico, nem amnésia seletiva e nem um positivismo inocente. A primeira proposta aqui é entrar em contato com a inteireza da nossa própria história. Nossa vida não se reduz a memórias ruins. A inteireza do nosso ser não tem como único marco histórico suas perdas, nem lutos, nem as dores, nem as causas dessas dores (traições, términos de relacionamentos, frustrações profissionais e familiares, lutas internas dos mais variados tipos, depressões e outras questões de saúde mental, tudo isso sem contar a PANDEMIA!). Tudo isso faz parte do nosso ser e com certeza são marcos muito importantes da nossa caminhada. No entanto, é importante que saibamos que a inteireza do nosso ser e da nossa história não se resume a nada disso. É importante mover nossos olhos e nossos acessos à memória do desespero, para o que pode dar esperança.

Em momentos dolorosos somos tentados a ficar buscando explicações e entendimentos sobre os ocorridos. A explicação cognitiva, porém, não significa necessariamente a resolução afetiva. O texto de lamentações aponta o que claramente foi a causa da destruição do povo: o seu próprio pecado. É evidente que nossas dores não serão sempre consequência dos nossos pecados. Mas a confissão a Deus e o arrependimento seguem sendo propostas da nossa espiritualidade dentro de momentos assim. Entretanto, nem sempre vamos ter as explicações e os porquês, e a busca desenfreada por essas questões pode nos fazer presos às recordações que nos desesperam.

Uma perspectiva então parece se desenhar a partir disso. Deus, diante da nossa dor, não parece estar preocupado em ficar nos dando explicações. Ele pode fazer isso, mas não necessariamente o fará. Deus também não parece querer ficar nos tirando a dor com sua mão. Ele pode fazer isso, mas não necessariamente o fará. O que certamente Deus está disposto a fazer é estar presente. O autor de lamentações não apresenta dúvidas da presença de Deus. Na hora da dor ele ora, ele faz poesia pra conversar com esse Deus, que ele sabe que está ali para o escutar.

O autor também não está propondo dicas certeiras. Ele propõe trazer à memória o que pode dar esperança. O movimento de busca de outras memórias é um movimento ainda incerto, e que não se sabe ao bem onde vai dar. A indicação do fundo poço aqui é muito mais da necessidade de se mover do que da certeza da mudança. Estar preso ao passado e às memórias ruins nos impede de ver o presente. Então há aqui a necessidade de dar um passo que pode dar certo, mas que ainda assim, é incerto.

A vida na comunidade do nosso Senhor tem o potencial de nos acolher durante o sofrimento, e mais do que isso, tem o potencial de trazer novos marcos memoriais. Não só porque estamos sendo acolhidos, mas porque isso acontece a partir de gente que passou por coisas talvez muito piores que nós. O testemunho dessa gente, nos oferece memórias que talvez ainda não tenhamos, mas que podem nos dar esperança. 

Na hora da dor, nosso autor ora, ele faz poesia pra conversar com esse Deus, que ele sabe que está ali para o escutar. A oração é então uma maneira de se conectar com um novo marco memorial, e além disso, traz consigo aspectos de confissão, arrependimento e legítimo clamor diante do nosso Senhor.

 

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